Um retalho: A Primeira República do Brasil
Um dos temas mais detestados pelos estudantes sempre foi a Primeira República. Reconheço que compreender o fim da monarquia e a transição de poderes é tensa e árdua, mas necessária função de todos nós. Assim como de qualquer transição de sistemas políticos. O desafio de refletir sobre o poder no Brasil, em poucas palavras, é um verdadeiro sufoco para historiadores acostumados com comodidade de ser prolixo. Mas espero que me faça entender. Certa vez, uma professora de América disse: estudar política na América latina é assim... – apontando para o quadro cheio, com fatos que pareciam retalhos sem sentido algum. E não era de forma alguma ineficiência da professora. Política é jogo de poderes. Sempre foi. E, em um continente tão vasto, com anomalias tão peculiares, é, no mínimo, desafiador compreender essa colcha de retalhos da história. Nesse dia, pensei que aquilo não era para mim. Saí da aula confusa e incomodada com tantos desfechos inesperados e agentes políticos encurralados ou amedrontados, progressistas e conservadores. Assim se faz a democracia. Oposição e governo. Representação e participação popular. Porém, como tudo no Brasil, e eu arriscaria na América Latina, não é preto e branco, procuraremos matizar. O fim do Império foi, sem dúvida, marcado pela crise do mundo rural, decadência dos poderes dos engenhos. Fim da escravidão e transição da mão de obra. Porém, como sabemos, a mudança de mentalidade não rompe exatamente junto com um sistema político. A imagem dos senhores de terra, provedores, de família patriarcal, acumulou muito poder ao longo do tempo. Segundo Lilian Schwartz, em seu livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, esse “etos patriarcal e masculino” não só sobreviveu como fez parte integrante da formação da República brasileira, por meio da representação política dos senhores de terra em postos representativos e práticas eleitorais. É importante dizer que, inicialmente, em 1910, havia 22 milhões de brasileiros e, desses, apenas 627 mil tinham direito ao voto. Havia um tripé que fundamentava a Primeira República, os governos estaduais mantinham os embates políticos na esfera regional, o governo federal legitimava a autonomia dos estados e, por fim, o processo eleitoral fraudulento poderia se manter. No maquinário eleitoral da Primeira República, o voto era entendido como moeda de troca; numa lógica que viemos a conhecer como “voto de cabresto”. A prática se dava quando os eleitores ou “curral eleitoral” ganhavam uma boa refeição e eram mantidos em vigilância até que, por meio do voto, garantiam a lealdade ao chefe local. O voto não era secreto, o que garantia a verificação. Esse mecanismo, que nos parece tão distante, de fato fundou a República. Uma prática que ainda se faz presente por meio do convencimento e manutenção das desigualdades socais, marginalização e poderes locais contra qualquer lei. De fato, o Brasil abriga a maior eleição digital do mundo, de forma confiável e segura, o que é, sem dúvidas, motivo de orgulho e um alívio depois de tantas lutas. Mas a malha republicana, fundada na ordem e progresso, embebida de discursos positivistas e iluministas, não vingou. Em meio à discriminação, concentração de poderes e de terra, saudosismos escravocratas e elites latifundiárias conservadoras e reacionárias, o Brasil ainda tem como base da economia a produção de commodities. Ainda está à mercê dos interesses dos eternos colonizadores e do mercado internacional. Não há progresso, nesses tempos desafiadores, que nossa jovem e frágil democracia alcance. Mas sigamos defendendo-a.
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